Fornicar e matar e Outros Ensaios
Editorial Circuitos, Colección Nomadismos, Rio de Janeiro 2017.

LAURA KLEIN OU A PAIXÃO DO PENSAMENTO

Por Teresa Arijón

 

Reuni minhas armas
daí em diante enegrecidas
porque não estou grávida –recordei
para a eternidade.
Como havia pensado antes. Antes.
Assim e tudo tenho fome e sede.
Os víveres, de acordo com os velhos rudimentos,
sempre estão perto.
Vou por mais.

Laura Klein, La comedia de los panes

Uma madrugada fria em Buenos Aires, no bairro do Once –éramos as únicas paroquianas naquele bar minúsculo e extemporâneo com mesas de fórmica cinza – a inescrutável María Moreno, com um tom que oscilava entre o categórico e o confessional, disse sobre Laura Klein: “Ela é filósofa”.

A palavra filósofa ficou martelando na minha cabeça, porque naquele momento –princípio dos anos 1990, nossa segunda (ou terceira?) “década infame” do século XX – eu conhecia a Laura como poeta (já havia publicado A mano alzada, título muito significativo) e fundadora/integrante de algumas revistas-faróis dos anos 1980: Xul, Praxis, Alternativa feminista

Uma trajetória paralela ainda que não afim a minha, com meus poemas pizarnikeanos e meu rol de cofundadora da 18 whiskys. Mas se me faço presente agora (e de imediato me retiro) é porque me une a Laura o pertencimento a uma geração marcada – assinalada, sinalizada – pelo rastro e pelo sangue dos desaparecidos: as 30.000 vítimas do terrorismo de Estado na Argentina. Uma geração que “saiu para o mundo” imediatamente depois deles; de fronteiras confusas, algo descontínuas,  à que o silêncio que tentaram impor – que de fato impuseram à força ao conjunto da sociedade – não conseguiu calar. E porque creio que Laura Klein era naqueles anos, e continua sendo, uma das vozes mais sonoras, mais singulares, mais pensantes e mais aguerridas de nosso meio.

Corredora de grandes distâncias às vezes e, em outras, velocista capaz de alcançar Usain Bolt, Klein é das que se apresenta nas batalhas em todas as frentes. E quase sempre ganha.

Inevitável desgressão (ou conjunção) rastrear a essas damas que, com fúria e com delicadeza, foram tecendo o tecido forte e sutilíssimo das mulheres filósofas: uma categoría, um fulgor wittgensteiniano, uma autarquia que ainda briga por maior visibilidade e aponta seus raios e centelhas – seu conhecimento e sua práxis –contra o ainda sólido edifício do patriarcado, que por sorte começa a ruir.

Muitas delas, quase todas, ativistas voluntárias ou forçosamente desterradas da rachada torre de marfim. Será que nós, as mulheres, não podemos –agora, antes, ainda- deixar de ser ativistas? A logógrafa Aspásia de Mileto; Hipárquia de Maronea –que soube levar a vida de “filósofa vadia” e cuja morte foi homenageada com a Kynogamia; festa anual que celebra a incorporação da mulher à filosofia cínica -; Hipátia de Alexandria, a primeira astrônoma; Mary Wollstonecraft e Margaret Fuller; Flore Tristan, na mesma estatura de Charles Fourier com suas teorias; e mais recentemente Zambrano, Arendt, Kristeva, Langer, Beauvoir, Weil… As que poderiam se somar neste resplendor de pólvoras, aquelas que foram religiosamente vestidas de monjas e/ ou santificadas (Teresa de Ávila, Juana de Asbaje y Ramírez –para separá-las da humanidade comum destinando-as a um hipotético céu que “habilitava” o conhecimento –a capacidade de pensar –para aquelas que durante séculos não tivemos alma (tiveram que passar vários concílios do Vaticano para obtê-la) e ainda hoje somos empaladas, mutiladas, enterradas vivas e apedrejadas em alguns lugares do planeta, e em outros mais “ocidentalmente” civilizados, caladas e mortas de distintas, horrorosas, obliquamente consentidas maneiras. Mas esse é outro tema, ou o mesmo? 

Laura Klein é poeta. E seu olhar –quando digo “olhar” penso em John Berger e nas letras traçadas com urgência, como quem captura o voo de um colibri em repouso; ou melhor ainda: esse instante fugaz, excepcional, do colibri em repouso -, e seu olhar de poeta traz em seus ensaios rigorosíssimos, a partir do conceitual, um modo de discorrer que os torna mais próximos, mais perto do coração do fruto e do ouvido dos leitores.

No ano de 2012, Klein deu um seminário chamado O conhecimento como invenção. Cinco leituras de Édipo. Para sua apresentação em público, escreveu: “Édipo quer saber a verdade, mas não qualquer nem por amor à verdade. Para a confluência da investigação com o destino. Há algo que segue nos inquietando nesta história que navega, entre a inocência e a culpa, na cultura do Ocidente. (…) Toda leitura, forte ou fraca, é uma ´má leitura´, disse Harold Bloom; as fortes não pretendem ser genuínas, produzem outras interpretações. (Esses mal-entendidos são a matéria com as quais o animal humano inventa conhecimento. “

Como “má leitora” que se preze, Laura captura esse material maleável do mal-entendido e inventa conhecimento em seus ensaios plurais, pulsantes, pulsados. Escritos onde a linguagem também dança, como queria Nietzsche, e dança a “outra” língua –a alteridade ocupa um espaço de fundação na obra de Klein -; onde as Mães da Praça de Maio encarnam/ descarnam /desencarnam a paixão de Antígona no século XX; onde o aborto é abordado como “objeto de debate ético, não de política pública” e se convida a pensar que “uma decisão trágica não e uma escolha livre”. Valentes e certeiras, gozosamente felizes –ali onde a felicidade também é dor – tentativas de fuga das prisões binárias. 

Neste livro apresentamos apenas alguns ensaios, escolhidos pela própria poeta e filósofa, não na forma de um florilégio nem de um panóptico, mas sim de um panorama: essa paisagem que é ampla e contínua, e que é alcançada pela vista apenas como um instante, um presságio, uma intuição. 

Buenos Aires, março de 2017.


INDICE

I.

  • Dos ventres escravizados aos ventres alugados. A relação do capital/trabalho na prostituição e na barriga de aluguel.
  • A expulsão da morte. Paradoxos entre novas tecnologias reprodutivas e aborto. 
  • Antígonas do século XX? Mito e política nas Madres de Plaza de Mayo. 

II.

  • Não foi fácil escrever este livro.
  • Fornicar e matar — O problema do aborto. Prefácio.
  • Uma decisão trágica não é uma escolha livre
  • Dublê de corpo. A ambiguidade da gravidez.
  • Poderes e direitos.
  • Fora do campo de batalha. Entrevista por Flor Monfort.


III.

  • A Bíblia como espólio dos vencedores e outras estratégias de discriminação.
  • Jedwabne, a vergonha dos poloneses. Entrevista por Luis Bruchstein.
  • Perdoem a vocês mesmos. Jedwabne, Polonia, 10 de julho de 1941 — Uma intervenção poético-política.
  • Dançar a outra língua. Uma infância entre imigrantes.